“Pessoas Brutas” - um potente Satyros HQ - Não Perca

Gosto muito dos Satyros. Sua estética e forma de produção preservam muito de um teatro amador curitibano das décadas de 1980 e 90, quando o grupo funcionava por aqui: de um teatro de pesquisa, feito realmente de forma colaborativa e com muito amor. E um teatro “pobre”, sem grandes efeitos – não precisa deles pela força do criativo – que gira em torno de uma discussão social. Tendo passado por Portugal e se fixado, depois, em São Paulo, o grupo tornou a região central da Praça Roosevelt seu começo, meio e fim. Aquela velha afirmação de Tolstoi, “se queres ser universal, canta tua aldeia”. E é dessa realidade que o grupo não só extrai seus temas como revela talentos.

Satyros é teatro da rua para a rua, fala simples e todos entendem. Fala em duas camadas: a compreensível por todo mundo e a profunda, captada conforme a experiência de cada espectador. Fala à plateia bem nascida e à outra, que ali se reconhece. Fala a mim, que gosto dessa simplicidade e inteligência: é da relação entre os elementos simples da cena – colocando lado a lado, no mesmo momento, por exemplo, personagens ou discursos antagônicos, que gera fricção e nos revela.

 

Num estilo que eu diria  brechtiano, suas produções não “discutem” temas: elas os colocam. Quem os discute somos nós.

 

Texto e concepção cênica partem dos mesmos criadores, então é difícil dizer onde começa um onde termina outro. Na verdade, é um todo, uma ideia em palavras em luzes em sons e, muito, em corpos.

 

A dinâmica é um dos pontos áureos de Pessoas Brutas. O espetáculo é musical sem ser “um musical”, é música e dança com ritmo marcado e sem espaços vazios. Vale citar como os Satyros conseguem colocar o considerado brega e populacho, como canções sertanejas ou música do Abba, em uma redoma poética emocionante – se ri, se critica, mas se canta junto. E é através de elementos como esse que o grupo se identifica e atinge outra parte de seu público - talvez a principal.

 

As interpretações são competentes, são integradas e formam um quadro indissolúvel. Gosto muito, aliás, de alguns “quadros” – imobilidades que lembram HQs. Falando nisso, a preponderância das variações do preto e branco (trazendo a imagem da “selva de pedra” das metrópoles), as figuras mais ou menos caricatas, as elipses, o próprio texto com suas ampliações poéticas – como o funcionário que é apaixonado por sapatos -, tudo faz referência a essa arte essencial, potente, que á da história em quadrinhos.

 

Pessoas Brutas tem inspiração em mangás japoneses, mas não há como não lembrar de Will Eisner, que nos mostrou os becos da vida de Nova Iorque e chamava sua arte de “romances em quadrinhos”. 

 

Pessoas Brutas é Brecht, é HQ, é HipHop, é pós-moderno, é fragmento.

 

Prepare-se para algo denso e divertido. Mas descanse antes, tome um café: o espetáculo é de focos de luz -  como a marcar cada quadrinho. E, em geral, escuro.

E o jogo vocal vai do grito à fala baixa. Pede atenção.

 

Bom espetáculo!

 


Do release:

 

São 13 atores no palco para a terceira parte da Trilogia das Pessoas – com foco em personagens anônimos de São Paulo, pessoas que se parecem e podem representar todos os anônimos das metrópoles contemporâneas mundo afora.(...) estreou em 2017 e recebeu indicações ao Prêmio Shell na categoria Melhor Figurino; ao Prêmio Aplauso Brasil, em oito categorias; e ao Blog do Arcanjo, em três.(...) Os destinos de vários personagens anônimos de São Paulo se cruzam em uma teia de relações violentas em que buscam desesperadamente figuras heroicas para dar sentido às suas vidas desesperançadas. (...) discute a viabilidade da ética num Brasil moralmente arrasado. O grupo pretende refletir sobre o momento atual a partir de um conceito - o heroísmo. O espetáculo olha para a figura do herói de forma desencantada. Não há herói à vista, somente missões heroicas equivocadas ou egoístas. Os artistas propõem a seguinte provocação: “se não temos mais heróis, a quem recorrer?”

 

“É um trabalho potente sobre histórias que se cruzam. O eixo que corta o espetáculo é o sequestro pelo tráfico da filha de um político importante que enriqueceu com os esquemas das rachadinhas. Falamos sobre o que sentimos em relação à corrupção e como isso contribui para que a vida seja mais triste, mais complicada e mais bruta”

(Ivam Cabral).

 

Trilogia

 

Em 2014, Os Satyros resolveram dar início a uma trilogia que abordaria a vida dos personagens anônimos da cidade de São Paulo. A primeira montagem foi “Pessoas Perfeitas” (prêmios APCA de melhor espetáculo, Shell de melhor texto e Aplauso Brasil de melhor dramaturgia), que tratava da vida de moradores da região central e da Zona Leste de São Paulo.

 

Em 2016, “Pessoas Sublimes”, tratava de uma região pouco explorada na dramaturgia sobre São Paulo - Parelheiros, bairro periférico da grande metrópole. O espetáculo falava da relação entre o mundo dos vivos e dos mortos.

 

Em 2017, “Pessoas Brutas” -, criada a partir de entrevistas e observação in loco, além de depoimentos dos artistas participantes, para investigar a questão da dependência química e psíquica no cotidiano de moradores da metrópole de São Paulo.

 

Mangás japonses

 

Todo o visual da peça, em preto, branco e tons de cinza, é inspirado na “selva de pedra” das grandes metrópoles. Mas foi concebido também a partir de uma outra arte: os mangás japoneses.

 

“Os mangás eram incialmente em preto e branco, tiveram origem numa época em que o Japão passava por uma grande crise econômica. Eram impressos em folha de jornal e em preto e branco, para que eles não precisassem gastar muita tinta. Isso nos inspirou, pois não tínhamos dinheiro e queríamos fazer alguma coisa criativa e que fosse legal. Daí começamos a pesquisar o gênero dos quadrinhos - em especial quadrinhos em preto e branco - e os mangás. E, assim, todo o visual da peça acabou indo para o preto e branco com alguns tons pasteis”, contextualiza Cabral.

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