O FESTIVAL E OS NOVOS TEMPOS - um convite à reflexão

 


UM FRAGMENTO DE INTRODUÇÃO 

Tudo parece estar mudando muito rápido em todos os setores da sociedade. E nem falo dessa coisa globalizada que faz com que uma guerra possa, de repente, alterar a vida econômica e,  em seu rastro, inúmeras alterações sociais. Falo de estarmos presos ao tempo não só do presente, mas do “de repente”, este work in progress imediato.

Ao mesmo tempo, estamos num momento de consciência das múltiplas relações: horizontais, verticais - e sabe-se lá mais quais dimensões.

E existe a atual “explosão de pontos de vista”: todos os grupos (e tribos)–  e friso os antes desempoderados – podem agora expor em todas as mídias suas narrativas sobre fatos, processos, ou seja, como é um mundo do ponto de vista deles, que o vivem”.   

O que era antes “o mundo” não existe mais. Agora são "mundos", ao mesmo tempo, fragmentos. Isso vale para “as pessoas”, “o ser humano”, “a vida”...  A generalização morreu. Aliás, creio que nunca existiu.

Nosso tempo são águas revoltas que quase obrigam ao imediatismo de ações e respostas para nos mantermos sãos, para não nos afogarmos. Paradoxalmente, ansiamos por valores perenes, portos seguros onde possamos descansar, organizar a mente, entender nossas experiências.  

Há, também, pouco tempo para se analisar o agora a partir de pesquisas e reflexões sobre o passado. Porque até o passado está em revisão. Igualmente difícil realizar prognósticos de futuro.  Admiro o trabalho destas pessoas que tentam realizar análises – em todos os setores – para orientar outras: é como se não houvesse tempo para deslocar-se do olho do furação e se chegar à tal reflexão crítica.     

Em teatro, a valorização daquela crítica especializada, que muitas vezes apontava para supostos erros técnicos, estéticos e conceituais de determinado espetáculo, mudou. Em parte porque era uma crítica que, muitas vezes, trazia um valor estático de “certo e errado”. Em parte porque ficamos mais carentes e também menos dispostos a conversar publicamente sobre nossas falhas e erros. Em parte pela radicalização das “tribos” (penso conforme minha tribo e você, se pensa diferente, vá se f...). E, além e aquém de todas essas partes, estão as alterações de comportamento geradas pela pandemia.


O QUE ISSO TEM A VER COM ESTE FESTIVAL?

O “Festival de Curitiba 30 anos” fez uma opção louvável: trazer espetáculos já realizados, na forma de remontagens. Para comemorar, para lembrar, para homenagear carreiras... para trazer um tanto de passado e estes tempos... E, talvez o mais importante, optou por ajudar os artistas a trazerem O QUE ERA POSSÍVEL, nestes tempos de pandemia e de governo avesso, em que a classe artística se perdeu qualidade de vida e condição de produção de novos espetáculos presenciais.

Porém, isso traz algumas questões com as quais os artistas se depararam e vocês, como espectadores, podem ter percebido.

Por exemplo, como se reapresentar integralmente algo que foi fruto de outra época? E qual percentual de adaptação faria sentido?  

Sendo o teatro arte do aqui-agora, como trazer a obra que se originava do frescor da idade daqueles artistas, daquele processo pelo qual passavam, daquele momento pelo qual passava o país e o mundo?

Como incluir na remontagem novos artistas, em lugar dos artistas-criadores que já se foram, mantendo a alma da obra? E, se é o idealizador quem se foi?  Um espetáculo teatral é geralmente fruto vivo de um longo processo... o que acontece agora, anos depois, quando tal processo é pálida lembrança?

E o que fazer com a experiência? Alguns grupos ficaram mais velhos, ganharam em maturidade e perderam em vigor físico. Soube de um espetáculo em que se precisou incluir mais atores, visto que hoje o elenco original (que era menor) não conseguiria realizar a troca de figurinos a tempo entre uma cena e outra.

E quando o grupo precisa se reencontrar para realizar a remontagem? Quando cada um seguiu seu caminho de individualidade, alguns tendo até parado de fazer teatro? Assisti a um espetáculo em que, de minha lembrança, havia equilíbrio entre os atores. Na remontagem de agora, percebi que um deles se tornou o centro da cena, alterando o delicado equilíbrio e o jogo que fez daquele um grande espetáculo.

Há também as perdas de presença, de pulso, de ritmo, ocasionadas quando se fica longe dos palcos, sem a resposta da plateia. Até pegar o jeito de novo, vai tempo.

E o fazer com o que eram recursos de humor originais ou ineditismos estéticos, e agora, não têm a mesma potência? E há o detalhe de vivermos uma época, nas mídias, em que todo mundo copia e cola e assina seu nome embaixo. Em que uma ideia ou recurso é reproduzida aos montes, até ninguém aguentar mais. Lembro de quando apresentei a obra de Molière a alunos. Alguns opinaram que o humor do gênio francês era “muito batido”.

Não que eu me importe com essa ideia de “batido”: o que tem vida e tem potência sempre é bom. Mas parte da plateia espera ver algo novo, coisa que não sei se mudou e é bem cara de Ocidente, quase uma ordem de “crescer, mudar, transformar”.  

E, neste sentido, o do tal do novo, creio que o Festival acertou em cheio: se existe uma necessidade unânime, é a do encontro presencial com um teatro em que brilha a gente viva.

Um teatro que traz da essência a magia de “ver o que não está ali”.

REMONTAR SAI MAIS CARO?

Me parece uma questão das mais importantes: se o espetáculo remontado é parte do repertório do grupo, que bom! Tecnicamente, remontagens podem ser mais baratas e demoram em geral menor tempo que conceber um novo espetáculo. No entanto, todo o esforço para uma apresentação única em um festival vale a pena? Isso pode ter dado origem a espetáculos – como alguns que assisti - que parecem ter sido refeitos com certo desleixo. A ponto de parecerem ensaios gerais - quando se vê o ainda o som mal equalizado, atores ainda se ambientando a marcações cênicas e, até, não tendo decorado parte do texto. Felizmente, foram poucos.

Não vou aqui fazer juízo de valor, afinal, quantas coisas estão por trás das coisas e não sabemos, nesses tempos de escuridão, né?  É apenas meu desejo de que um grupo ou um artista seja a melhor versão de si, para que o aplaudamos de pé. E, neste sentido, destaco o grupo Galpão: soube que, antes da reestreia, ensaiaram muito, com receio de não manter a qualidade. E, pasmem, após o sucesso retumbante no primeiro dia, continuaram ensaiando muito para a próxima apresentação.    


E A NOVA PLATEIA?

Existe uma nova plateia? Provavelmente. Talvez a mesma que passou, nos meios audiovisuais, a preferir produtos inacabados, lives, em que artistas e comunicadores se mostram como gente e sem aquele perfeccionismo todo; talvez seja a mesma plateia que ganhou certo enfado de coisinhas super-bem acabadas esteticamente (até porque, hoje, qualquer um pode fazer isso, sem arte alguma); talvez uma plateia que prefere a arte, a ideia, a emoção, à bela embalagem padronizada; e que esteja – ou seja – sedenta do encontro com a magia, com a troca em carne osso visceras...

Me parece que perdoa muito mais, compreende muito mais. Lembro que, há uns 20 anos, era corrente ouvir atores dizerem, do teatro, em entrevistas “não importa se seu pai morreu no dia do espetáculo, você vai lá e o faz do mesmo jeito”. Hoje, se um ator ao final de espetáculo pede desculpas por não ter sido bom por problemas tais e tais, é capaz de ser aplaudido de pé.

Se isso tem lados ruins, tem, pois somos seres humanos e podemos cair num aspecto preguiçoso do discurso de “fiz o meu melhor”, quando, antes, era “fiz o necessário”.

Me parece que esta é também uma plateia que apoia - e não apenas o artista. Se coloca no lugar do outro. No espetáculo Till, do Galpão, a personagem vai à plateia e gentilmente convida uma espectadora a ir ao palco realizar uma função simples, provavelmente sem exposição negativa. Levada pela mão da atriz, a espectadora começa a subir ao palco, visivelmente nervosa. Bem aí, a plateia começa a aplaudí-la, como a dizer “parabéns, vai com fé!”. E, quando a cena acaba, aplaude novamente. Me surpreendeu, pois o normal era, até então, apenas aquele aplauso ao final.

POR FIM... 

Não são críticas o que escrevo aqui, são considerações, olhares de quem também está no olho do furacão. Espero que sirvam a vocês, leitores, de alguma forma.

No saldo geral, sei que ficará deste Festival de Curitiba a melhor das impressões. Um festival que não se restringe aos palcos e às ruas, mas oferece inúmeros espaços de discussão e de conhecimento, conforme se pode ver pela enorme programação.

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