CORDEL DO AMOR SEM FIM ou a flor do Chico – FELIZ ENCONTRO ENTRE OS GERALDOS, BARRAL, VILLELA E NÓS.
"Um grupo de teatro campineiro ou uma família de artistas que que nunca deixa de se lembrar, uns aos outros, que não se forma um ator sem se reformar um homem”.
(Os Geraldos, no Facebook)
Presença viva, portanto sujeita ao momento portanto, efêmera. Tal é a raiz do teatro.
Passou pelas transformações das sociedades humana. Alterou suas formas de produção, notadamente a partir do século XIX, com o advento do rádio, depois do som gravado; da iluminação elétrica; da fotografia, do cinema... da televisão... da internet. Reinventou-se, redescobriu-se no que é especial e único. Teatro é flor do cerrado e é flor de pandemia: murcha um pouco, mas volta a se abrir. A presença de gente frente a frente e frente aos mistérios, o desnudamento, a celebração da vida – continuarão a acontecer enquanto restar, nesta sociedade incubadora de robôs, um sopro de humanidade.
GABRIEL, ENCENADORES E GENTE DAQUI
As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela presença forte da figura do encenador. Nomes como Gerald Thomas, Antunes Filho e Ulysses Cruz, por exemplo. Tais encenadores, diferentes dos “diretores de espetáculo”, inseriam nas obras sua visão pessoal de mundo e de teatro. Assim, não interessavam a eles trabalhar com artistas presos à gramática de um teatro convencional. Foi comum elaborarem verdadeiras “escolas de teatro” e trabalharem, sobretudo, com elencos jovens. A juventude, com sua vontade de aprender e de mudar o mundo, a juventude e sua paixão. Tal luta desses brasileiros, nova por aqui, já existia na Europa desde o século XIX, quando do surgimento do ecenador: Antoine, Stanislavski, Meyerhold e tantos outros se seguiram.
Foram citados, não poucas vezes, como “tirânicos”.
Também por volta dos anos 80, no interior do Paraná, surgiram grupos que marcaram época: em Londrina, o Proteu (Nitis Jacon) e o Delta (José Teodoro). Em Curitiba, o Lusco Fusco (Luiz Carlos Teixeira da Silva). Para se ter uma ideia da qualidade daquele trabalho: embora de nomenclatura “amador”, O Proteu em certo ano teve seu espetáculo considerado como “a melhor estreia do ano” pelo respeitado veículo carioca Jornal do Brasil.
DESENCONTROS E ENCONTROS
Por sua visão particular do fenômeno teatral,
muitos encenadores tiveram grandes desavenças com dramaturgos (foram famosas,
por exemplo, as discussões entre Tchekov e Stanislavski). Porque era um choque
de dramaturgias – a do texto e a da encenação. Citando Villela, recordo da
montagem de “A Aurora da Minha Vida”,
quando o encenador alterou ou retirou partes
do belo texto original de Naum Alves de Souza, substituindo-os por outros
discursos cênicos. Gerou fricção.
Gabriel Villela é um poeta do palco. Para que sua obra aconteça,
precisa de uma equipe sensível à sua visão de mundo. E que o siga com fervor.
Fervor de amor, não de ausência de crítica nem de anulação artística. Não à
toa, talvez os mais fecundos encontros se deram com o grupo mineiro Galpão, também
repleto da brasilidade interiorana, do
imaginário do povo mineiro, das festas populares e do circo-teatro.
Em seu teatro estão as características barrocas de
pompa e grandiosidade (trazidas com simplicidade, criatividade e economia), os
detalhes, cores e ornamentos, a exploração das imagens e materiais da região, a
presença da música. Tudo respirando à religiosidade.
Em Cordel do Amor Sem Fim,
o poeta reaparece em integral, através de Os
Geraldos, de Campinas, grupo ainda jovem, criado em 2008, e composto por atores-pesquisadores
formados pela UNICAMP. Na essência do termo, trazido por Luís Otávio Burnier,
está a avidez por investigar essa biodiversidade que é o teatro. É disso que gente
como Villela precisa: uma juventude, de interior, de intensa experiência (sim,
leia sobre eles) e de uma trajetória traçada na cultura popular.
Segundo a atriz Paula
Guerreiro – “para Gabriel, após Estado de
Sítio, Cordel do Amor Sem Fim foi uma segunda profecia: é um espetáculo sobre a
espera e um espetáculo que esperou dentro de malas por quase dois anos, porque
ficou pronto antes de eclodir a pandemia”.
O TEXTO DE CLÁUDIA
BARRAL
A peça fala
diretamente com o espectador, através da narrativa “circense” de um menestrel
que, já de início, traz texto lindíssimo sobre a vida, o amor e o tempo.
São três irmãs que
vivem em Carinhanha, no sertão baiano ds margens do São Francisco. A mais nova,
Tereza, vai ao cais buscar farinha para o almoço de seu noivado com José. As
outras duas, esperam. Surpresa: apaixona-se de rompante por Antônio, um
passageiro. Ele promete voltar para ela. Este acaso fará com que a vida da moça
aconteça, daí à frente, em torno dessa espera. Espera que mudará o rumo de
todas as personagens dessa delicada história sobre tempo, amor, posse e sentido
de existir, inspirada em narrativas, poesias e culturas locais do sertão
baiano. As consequências da escolha de Tereza lembram o quanto estamos embaraçados
uns aos outros.
O subtítulo é “ou a Flor do Chico”, talvez referência
dupla às flores que nascem de cactos à beira do rio e ao compositor mais
feminino de nossa MPB. É uma história contada do ponto de vista das mulheres. Toma
o espectador pelo coração e o leva pelas linhas melódicas da comédia, do drama
e da tragédia.
Cordel do Amor Sem Fim, como um bom “causo”, tem a armadilha da fala simples, que leva a
cada um espelhar nela suas profundas experiências.
DO VERBO FEZ-SE A CARNE
A direção de Villela dá carne, músculos e vísceras ao texto, através
de elementos simples e muito potentes. Seu espírito paira também sobre cada
ator, atriz, músico. E sobre essa entidade grupal chamada Geraldos, que garante que o mecanismo funcione como um relógio. É
preciso não só domínio técnico, mas também entender a noção de “interdependência”:
assim, Barral, Villela e Geraldos abraçam todo o espaço da plateia, sem sair
literalmente do palco.
No elenco, não há destaques senão quando a cena pede. No entanto, há
uma mola mestra, a figura do menestrel. Esta exige
muito do ator. Após o silêncio inicial, nos insere no clima com o belíssimo
prefácio poético e, após, pontua toda a narrativa, ora interferindo ora criando
os climas que antecedem muitas das cenas. Conheço bem este prefácio: é do tipo
de poema que “fala sozinho”, bastando ao intérprete dizê-lo de coração e
permitir silêncios para que suas imagens se façam no espectador. Aqui, e
somente aqui, a interpretação – talvez na ideia de manter vivo um texto longo
logo no início de um espetáculo, talvez para inserir climas - abusa um pouco
das variações formais, do virtuosismo do menestrel, em detrimento do texto. É
uma opinião pessoal, longe da ideia de “correção”. Até porque outros podem ter
gostado muito justamente disso. No decorrer do espetáculo, o ator usa dos
mesmos recursos com maestria que poucas vezes vi.
As músicas cantadas e acompanhadas ao vivo, vão de trechos de
Roberto Carlos a Porto Solidão,
passando por Zezé de Camargo e Luciano e outros. Importante destacar que, com
belos arranjos, as letras ganham especial significado no quadro da história,
quase como se fossem escritas para o espetáculo. E o uso de um cancioneiro popular
considerado por alguns como brega ou de segunda linha, provoca a reflexão: não
poucas vezes tais canções nascem de cenas profundas da vida. Precisam, para
ganharem valor, serem interpretadas por um Almir Sater, ou um Taiguara, ou um
Caetano?
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