ECOS DO FESTIVAL DE CURITIBA: "MUTAÇÕES" - COMENTÁRIO COMPLETO

Baseado nas simbologias do I Ching - O livro das Mutações.
Espetáculo de André Guerreiro Lopes, a partir da dramaturgia de Gabriela Mellão. No palco Luís Melo, Andreia Nhur e Alex Bartelli.


UMA PITADA DO I CHING

O I Ching é a matriz da civilização chinesa, raiz do taoísmo e do confucionismo. No ocidente, é conhecido enquanto oráculo e tratado de filosófico. Mas o Tratado das Mutações, como também é chamado, é base de um vasto conhecimento que inclui matemática, alquimia, ciência, artes, medicina, meditação e cosmogonia.
Mesmo em sua dimensão oracular, convida a enxergar mais amplamente. Seu estudo permite que se chegue ao ponto em que o ensinamento esteja tão assimilado que, diante de qualquer questão, se consiga encontrar dentro de si uma resposta direta.
A energia Ki - da vida em movimento - que no seu fluxo anima todos os seres vivos e permeia o Universo, ligando todas as coisas como um todo e cujo movimento existe entre polos opostos: do positivo ao negativo, do alto ao baixo, do feminino a masculino, do dentro ao fora, do mental ao físico, do que nasce ao que morre, do cheio ao vazio, e por aí vai. Tudo contém em si seu oposto, como no famoso símbolo Yin Yang. Deixar-se fluir nesse fluxo (“ser um com ele”) seria a aceitação da vida e estar em plenitude.
A fluidez é saúde, sua interrupção favorece a doença. O I Ching está na raiz da medicina chinesa tradicional e em artes orientais como T’ai Chi, a arte do arqueiro, o Ikebana e outras. Em teatro, o ator japonês Oishi Oida, aborda princípios dele em seu livro O Ator Invisível.

TUDO CONVIVE E TUDO É MISTURA

Certo dia aprendi um conceito oriental em relação à arte do ator, mais precisamente sobre personagem: “O personagem está feliz E está triste”. No Ocidente, costumamos acreditar que estávamos felizes OU estávamos tristes; que estávamos satisfeitos OU insatisfeitos... e por aí vai. Também as emoções humanas, como tudo, são graduações (como do medo ao desespero); e não são “puras”, mas misturas. A nostalgia, por exemplo, é a memória do prazer de momentos passados e a dor por não mais tê-los. Mesmo a biologia, hoje, traz que ninguém é totalmente masculino ou feminino, somos graduações e misturas.
SOMOS QUEM SOMOS

Por fim, a permanência do I Ching reside também em que, independentemente das evoluções externas que nos afetem, continuamos nascendo, passando pelas idades e morrendo. E sempre, sempre será inédito. E individual: o ancião à beira da morte não consegue repassar a uma criança as virtudes que acessou em vida. Simplesmente porque ela absorverá a tudo como uma criança, pois é o que ela é.
Mais tarde, claro, ecos de ensinamentos, assim como memórias de situações vividas, ajudarão em sua evolução.
Mas ninguém pode habitar senão em si. É a solidão fundamental.
E algo sobre aceitação. Tanto para reis como para mendigos, diante da morte estaremos nús. Não apenas no momento dela, mas já no processo de ir se despindo no caminho da despedida.



O ESPETÁCULO MUTAÇÕES é um dos poemas cênicos mais lindos que já presenciei.

APENAS UMA CADEIRA?

Desde que a plateia se apaga aos poucos, existe à frente da cortina uma cadeira solitária. Passa a ideia de um espetáculo muito simples, talvez palco vazio e apenas atores se relacionando.
O ator Luis Melo entra, senta-se, nas mãos algumas folhas soltas. Cita palavras-coisas. São, em geral elementos da natureza, como Vento, Montanha, Fogo... Relaciona-as a conceitos, como interior, exterior, alto, baixo, acima, profundo, ativo, passivo, forte, fraco, lento... e a sensações como quente, amargo, silêncio... e a cores... e a partes do corpo humano, que enfatiza por gestos, órgãos internos e externos, como pés, coxas, plexo solar... e essas partes a energias como força, resistência, insistência, aceitação... parece que termina por resiliência ou algo assim. E por aí vai...
Chega a ser estafante esse início lento, falado de forma quase protocolar, quase lido, pausadamente. São palavras demais para nós, neuróricos e apressados, passivos, que esperamos por ação que nos mova. Negando o esforço de nos movermos.
Em seguida, ele sai. E as cortinas se abrem.
Lembrei da forma tradicional de se consultar o I Ching. Se usa 50 varetas de caule de milefólio ou de bambu. O consultante deve estar em posição relaxada, porém desperto. Enquanto pergunta ao oráculo, deve levar as 50 varetas – uma a uma - de uma mão para entre os dedos da outra. Isso, para chegar à cada linha das seis que compõem o hexagrama que traz a orientação a que se pretende.
Caso, durante o processo, uma vareta caia... deverá reiniciá-lo.
O ato requer, portanto, envolvimento total, físico e mental. Durante, repete-se constantemente a pergunta; pensa-se no que se está, realmente, perguntando.
E há o método simplificado, de se usar três moedas. Para achar cada linha, basta jogar uma vez as três moedas e somar seus valores. Pode durar minutos, ser muito rápido. E superficial.
Aí está a cilada: na primeira forma, é preciso determinação. O oráculo exige: se a pergunta é importante mesmo, você não vai desistir. E, nesse vínculo mental e físico, o corpo se ocupa e a mente se acalma... e as portas se abrem.

Ao se repetir tantas vezes a questão e a debruçar-se sobre aquilo que a envolve, cantos da gente se iluminam e parte das respostas começa a aparecer.
Ou seja, o oráculo está dizendo que parte da resposta já está em nós.
Parte do espetáculo está em você. Talvez ele peça isso, na primeira cena. Para, em seguida, receber o que vier de forma inteira e participativa.



QUANDO AS CORTINAS SE ABREM...

...uma poderosa onda musical desce do palco à plateia. Na caixa cênica, sob neblina, algumas varas – aquelas usadas para se pendurar refletores, panos e cenários - se movimentam. Só que, aqui, nuas.
Numa quarta vara, dois refletores, feito bailarinas, desenham trechos no palco quase vazio: apenas duas pedras suspensas a emoldurar a boca de cena.
Destaco este momento sem medo de “dar spoiler”. Porque serão muitos, muitos outros a seguir.
Não lembro de ter visto em cena um protagonismo desses elementos, que costumam servir como base para criar ambiente e destacar cenários, figurinos e atores.
Em outras palavras, o próprio palco cria vida.
Transmitida a tudo o que virá a seguir: ventiladores se tornarão o vento; panos, luzes, pedaços de cenário... serão eles E serão os elementos da natureza. E assim os atores, a alma humana – o Ancião, o Jovem e Ela, em corpo e som.

O TEXTO MERECIA UM LIVRO

Ele é primeiro, palavra-imagem, depois imagem-carne e correnteza ao barco de nossa viagem. No teatro, o tempo não permite alcançarmos sua devida apreensão. Talvez o recado seja: “sinta as palavras em seu impacto e deixe-as seguir seu curso”.
Algumas frases são para colar na gente: O tempo é um ótimo professor, pena que mata seus alunos”.

E(cito) palavras de uma cena mais longa:

Ela: Silêncio. Nada acontece.
Ancião: Milagre.
Jovem: Quando nada acontece, é um milagre?
Ancião: Milagre.
Ela: Não está vendo?
Jovem: Não. Ancião: Se não está vendo, então é milagre mesmo.

Particularmente, não gosto de frases-destaque. Prefiro as que colam naturalmente em mim. Mas, cada um cada um. E muitas pessoas adoram levar frases para sua vida.
E há tantos textos sem palavras, neste espetáculo!
Tantos embates entre o Jovem e o Ancião... e Ela, esse feminino musical esculpido lindamente pela voz da atriz.


APROXIMAÇÕES

“Mutações” me traz lembranças: o filme Koyaanisqatsi : Vida em Desquilíbrio; o espetáculo Um Tartufo, dirigida por Bruce Gomlevsky; Vem também a Dona da História, de João Falcão; vem o espírito com que o titereteiro Sérgio Mercúrio impregnava seus espetáculos. Vem Tropeço, de Dico Ferreira e Katiane Negrão, onde sem palavras se conta a convivência entre duas velhinhas que, pasmem, eram representadas por um par de mãos. E não há como não lembrar de Trem Caipira, Bachianas... Villa-Lobos.
E, lembrança antiga, a sensação que tive ao estar, na DisneyWorld, viajando no trem e ameaçado por King Kong.

TUDO FLUI

“Mutações” é movimento, linha circular, T´ai Chi.
O trio de atores existe com individualidade dentro de uma coreografia precisa. Com a expontaneidade do que nasce a cada momento. Junto e eles, pasmem: apenas três contra-regras a movimentar toda a vida da cena. Nem dá pra acreditar.
Na viagem das palavras, o espetáculo alterna momentos em que elas se debatem e estilhaçam com outros, mais lineares, de descanso à mente racional - como o discurso do governante.
Os sons, alguns circundam o espaço, tridimensionalmente, outros ecoam.
Nada se repete, nessa sinfonia de cordas, de sopros, de gritos, de ruídos, de engrenagens... e de silêncios fundamentais.
E de escuridões fundamentais.
Destaco, sem dar spolier, a cena próxima ao final, em que o Ancião, está sobre uma espécie de rocha/trapiche, acima de um lago/rio de névoa. Ali, se defronta com o Jovem. O Jovem... provavelmente ele mesmo. O Jovem que não quer se ir. Suas memórias, a vida, que não quer largar... sabe-se lá.
E esse jovem cai. Afunda nas águas; E o ancião o puxa de volta; E se abraçam. Por uma, duas três... até que o que tenha de se ir, se vá.
É de uma força poética arrebatadora.
Por fim, lembro dos três personagens, lado a lado, enquadrados pelo espaço imenso.
Para mim, poderia acabar ali. A frase final seria, apenas, o silêncio.

CAMBIA... TODO CAMBIA

“Mutações” é criatividade do simples, que basicamente abre mão de qualquer recurso alheio à tradição do teatro.

É daqueles espetáculos que lembram a gente da potência que só o teatro pode ter.

Renova a alma, entre a vida e a morte.

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