TRAGÉDIA - Um espetáculo potente.
Desde a cena inicial, no proscênio, na qual, enquadrados por uma parede de engradados plásticos de cerveja, na cor laranja, dois personagens discutem em uma língua desconhecida repleta de consoantes fortes, até o final, “potência” parece ser o tom deste espetáculo do grupo mineiro Quatroloscinco - teatro do comum. Que tem em sua prática – a exemplo do Galpão, também de MG - trabalhar com diferentes diretores. Em Tragédia, é Ricardo Alves Jr. O Quatroloscinco Já esteve por duas vezes no Fringe e, desta vez, na Mostra Lúcia Camargo.
Retornemos à cena inicial: um deles é mais agressivo. O outro, de fala ponderada, mas sem ceder. Ora parecem estar discordando fortemente, ora seus gestos beiram à violência, ora parecem quase amigos. A discussão acorda nossos sentidos. Em que lugar do mundo estarão? O que discutem?
Terminado o embate, recolhem as caixas, enquanto um cantar nos remete ao divino e ao lastimoso. De início parece sonoplastia, mas vem de um terceiro ator. Parece vir através dele, pela ausência visível de movimentos em sua boca e em seu corpo. Aos poucos, aparecem as inspirações, com certa angústia, entre as frases musicais. É divino, é lastimoso e é humano... Mágico.
Após, pode-se entender – não é claro - que a parede de caixas do prólogo seria a de um bar. O vimos de fora e, agora, sem a parede, o vemos de dentro. Nele, uma mesa de sinuca e três atores/personagens irão iniciar um jogo. Se antes estávamos em algum plano indefinido, simbólico, agora estamos num bar. Um bar no interior do Brasil.
Um deles explica aos outros como se joga sinuca. Explica as regras. A cena é leve, por vezes engraçada. O primeiro explica – demonstrando com movimentos de jogo - que a bola branca é a bola principal. E ela não pode ser encaçapada, senão o jogador perde. Um dos outros questiona: por que a bola principal é branca? Por que tem de ser branca a bola com tais regalias e importância?
Em outro
momento - e o assunto se tornou a Grécia, porque é o berço da civilização
ocidental, segundo o segundo. O terceiro, se lembro, questiona. Ora,
porque os documentos científicos mais antigos sobre filosofia, teatro e outras
coisas, vieram da Grécia, responde o segundo. Por que, questiona o terceiro? Ora, responde o
segundo, é científico. Mas de onde vem essa ciência? E quem disse que, apenas
porque há documentos sobre a Grécia, não pode ter havido uma sabedoria de
outros povos ocidentais? - indaga o outro. O papo se desloca para outras notícias, outras pesquisas, e questiona-se sobre qual a
fonte delas. E se expande: fake news, pós-verdade, presidentes do Brasil e em dado
momento, um assunto se fixa: a memória. Ou a falta dela. Estamos falando de memória
social. De comissão da verdade, sobre o período militar. E de outras cositas más.
A discussão está acalorada entre dois e o terceiro lembra que, quando menino, seu pai e seu tio jogavam sinuca. Eram de opinião forte e um deles afirmou que, se o outro trapaceasse no jogo, o juraria de morte. Trapacear não pode. Assim foi e, certo dia, um deles apoiou a mão na mesa e o outro achou que uma das bolas havia sido deslocada. Foi quando o menino, no ambiente ao lado, ouviu um tiro. Prenuncia-se aqui, claramente, a polarização no Brasil e a violência entre amigos e até familiares. O menino veio e viu que o ferido era um primo, que ficou cego. Porque o rapaz, assistindo a o jogo apoiado com o queixo sobre o taco, com o tiro dado para cima, de susto deixou o taco escapar e ferir o próprio olho.
Dois parentes que discutem com violência... um cego... tudo prenuncia a tragédia. E grega.
Inicia-se
uma discussão a lembrar a polarização política atual, e as personagens se
tornam muito agressivos, a ponto de. Pausa. Então, ela acontece igual, mas em acalorado italiano. Pausa. De novo, mas na língua do início do espetáculo. A repetição enfatiza os corpos que
brigam, corpos sonoros e visuais. Enfatizam “a briga”. Em qualquer lugar do mundo. E aqui.
Não sei em que momento da conversa de Tragédia a Grécia volta ao assunto. Agora, são dois irmãos, filhos de Édipo, Etéocles e Polinices. Que também discutiram – e mataram um ao outro - por conta de poder e de trapaça. A partir daí, entra em cena a trilogia mais conhecida do mito grego: a tragédia da família de Édipo. Só que narrada pelo conhecido adivinho Tirésias, presente em várias tragédias gregas. Tirésias narra como se tornou adivinho do tempo do deus Apolo - enfatizando como os deuses são caprichosos e de humores instáveis.. Após, é também o comentarista de suas próprias discussões com Édipo. Surpreende, aqui, a história ser contada por um personagem originalmente secundário, embora importante. Faz todo sentido. No bar, em paralelo, os três amigos discutirão “o tal destino”: inexorável ou podendo ser produzido por pessoas, por grupos, pelo poder. E sobre a necessidade de sermos ativos na produção do presente e do futuro.
Chega-se então a
Antígone, terceira parte da trilogia tebana. Ela é irmã de Étéocles e Polinices que
contrariou o decreto do tio, Creonte – aliado de Etéocles – e enterrou
Polinices segundo os ritos. Não podia. Foi condenada a morte. Em nome dos deuses?
É Antígone
que, a partir de agora, passa a ser a protagonista, e reivindica o direito à
memória e à dignidade, entre outras coisas.
Em termos
formais, o espetáculo mostra, em vários momentos, os personagens sendo
filmados. Aparecem no telão e isso evidencia, enquadra o pensamento e os
humores, dando potência às discussões e às declarações.
E o bar, esse
nunca sai de cena, pois é “nós na sinuca do Brasil, nós da sinuca do Brasil”.
Muito se dirá e se sentirá no decorrer de Tragédia. É um espetáculo de ideia, de palavra, de palavra no corpo. Trabalhado cenicamente de forma potente, atraente, includente. Mas, a certa altura, quem não aprecia este tipo de pegada, poderá achar ou cansativo, ou tendencioso... bom, faz parte da coisa.
Tragédia vale pela discussão. Vale pelo elenco. Vale pela direção. Perder a viagem, você não vai.
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