INTIMIDADE INDECENTE – UMA HISTÓRIA DE AMOR PÓS-MADURA

 

UM PEQUENO PRÓLOGO

Das viagens que realizei, nunca esquecerei a sensação de estar a uns 50 metros da Torre Eiffel. Aquilo era um colosso, enorme! Também não esquecerei do barulho de meus passos nas ruelas, numa noite em Veneza – como se estivesse voltado no tempo. s.

Todos nós temos na memória “aquele show, ou aquele livro, ou aquela viagem”... em que estivemos imersos, submersos, por tempo suficiente para se alimentar do sonho; ou para alterar paradigmas. Podem até ter sido momentos de intenso sofrimento, mas que depois se transformaram em outra coisa. 

Me parece que é essa classe de experiências que compõem nossas mais caras memórias. Elas nos dão alegria, ou conforto, ou sentido, ou a sensação de “vivi, sim”, quando precisamos.

Falo de experiências que não se findaram. Se reproduzem muitas e muitas vezes. Se colocarmos um valor por todas as vezes em que foram revividas, veremos que custaram pouco pelo bem que fazem.

Algumas obras de arte vão com o vento. Outras, porém, “colam” na gente e nos acompanham pela vida.

Então, ontem assisti ao melhor espetáculo deste Festival de Curitiba. Classifico como “melhor” todo espetáculo do qual saio diferente de como entrei. E não precisa ser “novo”, só precisa ser intenso. Me lembrar que estou vivo.

Esta foi a experiência com Intimidade Indecente.


O texto foi escrito pela premiada Leilah Assumpção, importante nome de nossa dramaturgia desde 1969, com Fala Baixo Senão Eu Grito. Em cena, dois atores maduros a quem admiro: Eliane Giardini e Marcos Caruso. O cenário: uma sala, identificada pela presença de um único móvel, um sofá branco. A iluminação, também branca. Os personagens, um casal de classe média a média alta, cerca de sessenta anos, juntos há muito tempo e com filhos que já não moram mais ali.

É um espetáculo que começa simples, básico, conhecido, e vai aos poucos – como a melhor tradição da carpintaria dramatúrgica – nos envolvendo na complexidade que só o tempo consegue fazer surgir. Uma peça madura para atores maduros, repletos de matizes e de subtextos. 

No tom de comédia leve, o assunto logo aparece: após breve conversa sobre sexo – ou não sexo, visto que não há mais atração física por parte dele. Seguido, um embate já visto tantas vezes, girando em torno da forma diferente que homens e mulheres encaram a relação: “eu te amo, mas neste momento meu tesão pede outra coisa... que não é você”. Em seguida, descreve como ela não tem mais atrativos físicos. Ela se ofende – quem não se ofenderia, e contra-golpeia na mesma moeda. Assunto que, claro, envolve mulheres e homens da plateia, representados pelos boxeadores Caruso e Giardini.

É um texto inteligente, cheio de tiradas espirituosas que, com certeza, vão dando aos casais um arsenal a ser usado, quem sabe, na próxima discussão em casa.

Ao mesmo tempo, vêm à tona sem anestesia, coisas que as pessoas em geral preferem ir deixando debaixo do tapete.

Após certa idade, vivemos tempo suficiente para sabermos o que queremos e o que não mais. Ainda há certa energia para realizar alguns sonhos. É a tal “última adolescência”. Após, aos sessenta e poucos, já entendemos que o corpo – veículo para viver a vida – nunca mais será o mesmo e só irá perder o viço. Mas a mente, eh, ela ainda deseja.

E, quando se está em um casamento desses de muito tempo, os desejos de um podem ser vistos pelo outro como impedimento aos seus. Aqui, surge por vezes o desejo da separação. De outro lado, o amor – ou o costume do outro ao lado – criou tanta identidade que é difícil pensar que vai se encontrar algo tão bom fora dali.

Está posto o drama central da peça. Mas o tom é de comédia e, pensei então: será que vai terminar “em pizza”?

Então, com menos de dez minutos de peça, ele diz: “eu tenho uma amante!” (silêncio na plateia) Ela se surpreende e aí aquelas provocações de lado a lado, até que ela o enxota  a morar com a tal moça de 29 anos, melhor amiga da filha. Não esquecendo de afirmar que ele gostaria era de transar com ela. Ela, a filha. Uau! Pesado e freudiano (silêncio na plateia).

Então o personagem de Caruso se desloca a um foco à frente da cena e explica, em tom intimista, o que um homem sente. É um texto brilhante e mostra também a força do grande ator, por baixo da simplicidade aparente da cena.


Quando ele volta “à sala” (num simples efeito de mudança de luz), já se passaram alguns anos. Ele a visita. Papo vai papo vem, insinua querer voltar: a moça o trocou por alguém da idade dela e etc. Em resposta, ela vinga a plateia feminina com a revelação de que ele não pode. Porque ela casou. Depois, a surpresa: com uma mulher. Aí será a vez de Eliane Giardini ter seu primeiro momento de foco: sua personagem vai falar – com detalhes - sobre como é mais prazerosa a intimidade com outra mulher. Não precisa de um homem.

Estou reduzindo o que acontece, claro. E a intimidade entre esses dois grandes atores e sua maturidade de cena nos enchem de detalhes saborosos, cuja descrição seria impossível: é arte, é teatro. Novo ou velho, não importa: é saboroso!

Daí para frente, o espetáculo continuará na mesma estrutura e na mesma dinâmica: situações e discursos comuns, mas recheados por fatos inesperados. Um tempero que dá certo.

Assim se passarão mais 20 anos. E os muitos detalhes que mudam nas personagens, por imposição da vida e pela relação entre eles, pelo envelhecendo mental e fisico, são revelados de forma enxuta: Caruso e Giardini traçam, com maestria, esse caminho humano marcado por perdas e por tentativas de ressignificar a existência. Com humor, mas sem aliviar a angústia.

O que fazer quando fatalmente relegados a personagens secundários na vida dos filhos, já distantes? Ou relegados a personagens sem valia para uma sociedade que não nos dá lugar? E, trágico, perdendo não só a capacidade de se locomover, mas também a memória, esse lugar de refúgio?

Penso:  quem está nesta plateia? Idosos que conhecem estes atores há muito tempo? Casais em idade madura? Jovens? Sim, estão todos ali. E me pergunto em que medida este espetáculo atinge cada faixa de vida. Não tenho a resposta. Só lembro que, aos meus vinte e poucos anos, eu era também tocado por esses temas. Também tinha pais, e também tinha avós, também pertencia a uma família.

Os personagens são de classe média alta. Têm recursos. Seu sofrimento é em muitas coisas diferente dos idosos de outras classes. Mas, enfim, estes outros idosos não estão nesta plateia, concluo. E volto ao espetáculo.

A cada vez que ele retorna ao apartamento para visitá-la, algum tempo se passou. E ele arranjou uma “secretária”. Ela, um cachorro e um personal. Suportes para se manter em pé. E a vida desce ladeira abaixo.

Me pergunto, quem são esses idosos da cena? Será que têm na vida alguma razão que os mantenha vivos, que os impulsione à algum tipo de crescimento? Dá a impressão que não. Parecem  direcionados a uma velhice em que apenas as perdas e as dores têm lugar: foram pais, mas esta função se foi; tiveram uma profissão ou ocupação, mas ela se foi; a energia sexual também se foi. O que lhes resta é assistir televisão. Ou a grande saída para um asilo desses modernos e breves excursões pela cidade na “van dos velhinhos”.

Talvez aí esteja um aviso do texto aos que ainda podem mudar.

Embora a vida em nossa estrutura social seja cruel a todos: outrora brilhantes, depois ainda em papel de destaque, iremos virar coadjuvantes. Depois, figurações. Por último, figuras esquecidas pela memória social, saindo definitivamente de cena. Em particular, lembro de tantos grandes artistas, presentes na nossa vida, que foram sumindo com os anos, a ponto de se perguntar “quem foi mesmo? Não lembro. Existiu? E, sem alguém para lembrar conosco, caímos em nosso próprio esquecimento. Trágico.

Sim, é preciso que eles voltem um ao outro!


Em todos os retornos dele após a separação, há uma proposta quase declarada de voltarem a morar juntos. De terem um ao outro, o que lhes resta. Mas ora um não quer, ora outro.

Mas é uma comédia . Então, haverá um happy end.

E o cenário dá a dica: durante os trinta anos da história, é sempre o mesmo sofá branco, na mesma sala. É sempre o mesmo “lar”.  Só falta os dois juntos de novo.   

Mas, ao passo que rio, me martela a dúvida: como isso vai acabar? E se um deles morrer antes do outro? O que vai prevalecer, afinal, a tragédia da vida ou a comédia vai salvar esse casal?  

E o espetáculo, então, nos dá a resposta, após fazer parte do público cantar a música de infância de meus avós, “Alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo sem ser semeado”.  

É um final lírico, numa passagem sutil... que só você vendo para saber.


FINALIZANDO 

Para mim, com tantos anos de teatro e tendo visto tanta coisa, mais uma aula desse casal Marcos Caruso e Eliane Giardini: a arte de causar silêncios significativos. E a de, com uma palavra ou gesto, mudar o traçado de uma cena. Além da lição de como, no palco, envelhecerem 30 anos sem nenhum recurso de maquiagem, sem trocas de figurino e sem aparatos cênicos que ajudem à ilusão. Ficam em cena o tempo todo.

E a humildade da direção de Guilherme Leme, presente em cada detalhe, mas invisível, dando protagonismo ao ser humano em cena.

Esta viagem vai ficar na memória.

Parabéns ao festival por esta escolha!

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