O TEMPO, A SALA E A ANGÚSTIA

 

 



De início, importante enfatizar que esta montagem foi realizada para estrear a convite do Festival de Curitiba. Portanto o público assistiu a uma estreia nacional.

Leandro Daniel Colombo e Simone Spoladore alimentavam, desde seus tempos de Curitiba, o desejo desta realização. Até o encontro com o atual grupo de artistas – grande parte também curitibanos e com laços afetivos entre si - possibilitar sua concretização.

Importante ressaltar que não houve patrocínio. Todos os profissionais trabalharam, até o momento, gratuitamente. Mas o grupo iniciou, há alguns meses, uma “vakinha” para ao menos pagar um mínimo digno a todos. Como ainda não angariou nem perto do suficiente, divulgo aqui o link a quem quiser contribuir.

https://www.vakinha.com.br/3376502

Caso não consiga, basta digitar, no Google, “vakinha o tempo e a sala”.

Segundo Simone, “Esta peça foi montada com poucos recursos, não estamos ganhando cachê como artistas, os recursos disponibilizados pagam apenas os custos para levantar o espetáculo. Mas aceitamos essa condição por acreditarmos que é uma forma de contribuir para este momento do país onde a cultura está sendo retomada, é uma aposta no futuro. Espero que a gente faça um bom trabalho, que o público seja tocado por ele e que futuramente circule pelo país e que possamos ser remunerados pelo nosso trabalho”.

O Festival de Curitiba custeou a logística, a permanência da equipe na cidade e a infraestrutura de teatro, além de um auxílio ao elenco pelas duas apresentações.

O Tempo e a Sala terá temporada a partir deste mês no Rio de Janeiro, no Firjam Sesi.

 


BOTHO STRAUSS E SUA OBRA

Romancista, poeta, ensaísta e dramaturgo, Botho Strauss, nascido em 1944, é um dos mais aclamados e polêmicos escritores alemães. Recebeu inúmeros prêmios, inclusive do Georg Büchner, em 1989, a distinção literária mais importante da Alemanha. Suas peças são compostas de fragmentos de memórias, sonhos e pesadelos, temores e mágoas, que ganham concretude cênica através de um conjunto de personagens  ou figuras – que agem de maneira inesperada e contraditória. Evidenciando um mundo destruído por uma estrutura fracassada, o desencanto e o vazio dos rituais sociais. Muito  parecido com o nosso presente, com a imposição de uma vida “virtual” em detrimento dos encontros reais, acelerado pela pandemia. Mostra a transitoriedade de nossas relações, a angústia que sentimos diante da dificuldade de fazer escolhas e o ritmo de vida alucinado de gerações que cresceram fragmentando a realidade, “zapeando pelos canais de televisão e, atualmente, muito além disso.

UMA ESTRUTURA PÓS-DRAMÁTICA

Strauss não conta uma história linear e com personagens tridimensionais, psicologicamente complexos. Cria figuras a partir de uma dimensão coletiva, reveladora sobre a sociedade a que pertencem. Ao invés da psicologia individual, uma “transindividuação” da pessoa contemporânea via sobreposições de traços comportamentais. “Criar figuras para o teatro é sempre criar um esboço e uma alusão. (...) Não tenho nenhum conceito de indivíduo – o que os autores burgueses ainda tinham, mesmo quando esse indivíduo se desintegrava em todos os pormenores imagináveis. A percepção das pessoas hoje é diferente: parte-se antes de estruturas. Não me interessa como uma figura isolada é constituída, interessa-me aquilo que tem caráter transindividual.

Ao autor, parece que o enredo estruturado é cada vez menos adequado à percepção de um mundo descontínuo de valores e de referências.

 

O ENREDO DESDRAMATIZADO

Diferente do enredo dramático, seu teatro pode ser visto mais como um aglomerado de “cenas”. Mostra mais uma composição do que uma história, embora haja atores vivos representando. Aqui, menos interessa a ação que os estados de alma ou as situações.

O tempo e a sala é espetáculo para ser absorvido como quando estamos diante de um quadro, no caso de vários quadros que vão se seguindo e não constroem entre si uma lógica sequente. Desta forma, deixando os sentidos e os sentimentos fluírem sem o atrapalho da mente racional, organizadora, acredito ser a forma melhor de perceber. E deixar que ele penetre e vá fazendo em nós, nos dias posteriores, o papel que a arte faz: de provocar, de incomodar, de resignificar...

AS PERSONAGENS

O teatro de Strauss capta tudo que é perturbador. É como um fotógrafo que cria uma paisagem do mundo interior, mostrando seres humanos que se isolam cada vez mais e, para sobreviver, criam realidades sedimentadas na fantasia, no sonho e na loucura. Têm dificuldade em estabelecer relacionamentos afetivos mais profundos. Os encontros com outros personagens parecem, muitas vezes, apenas encontros consigo mesmos e com seus medos, esperanças, expectativas e decepções.

Para Simone O Tempo e a Sala" revela a precariedade das relações (...) Em cena, personagens solitários que buscam contato mais profundo, mas que não se realiza.(...)

Marie Steuber, a minha personagem, sempre se adapta ao que os outros esperam dela. Para ser amada, abre mão da sua própria subjetividade. É catastrófico!

(...) A peça também nos remete ao que vivemos com intensidade na pandemia: a sensação de estarmos sem futuro, impotentes.

 

As figuras voltam-se para si mesmas, ignorando o que os outros têm a dizer. Travam diálogos que são mais longos monólogos ou até polílogos. São opostas às das dramaturgias tradicionais: sua principal virtude não é agir, mas sim a capacidade de se rememorar” tornando-se testemunhas de sua própria existência e de sua época.



SOBRE O ESPETÁCULO COMO O VI

Uma estreia é sempre um renascimento, pois com a presença do público.

Ainda mais em um festival. É um engatinhar. Assim, se já gostei muito, prevejo grande caminhada na temporada longa no Sesi-Rio e, após, nas temporadas pelo país. 

Adaptar Botho Strauss para o Brasil e para nossa época, mesmo sendo o texto muito atual, com certeza não foi tarefa fácil. E não se trata de um autor “de fácil decodificação”. Assim, muitas pessoas que foram ao Guairinha esperando por um espetáculo em linguagem convencional, com aquela historinha começo-meio e fim, podem ter se frustrado. Ao não conseguirem “identificar” as personagens e/ou suas relações, provavelmente “desistiram” de tentar entender e, assim, através de uma direção limpa e de atores competentes, captaram fragmentos, sensações, e os transportaram para sua vida. Ótimo!  

O cenário de Fernando Marés permite uma leitura mais ampla que a menção do texto original  (uma sala de um apartamento): ora parece ser uma sala ampla de visitas, ora um espaço para encontros fechados, ora um saguão de um aeroporto ou de uma grande repartição de trabalho: lugares por onde as pessoas vem e vão. E, principalmente, passam. O uso de malas, em algumas cenas, reflete bem a ideia da transitoriedade.

Esta primeira direção de Leandro Daniel Colombo me parece um tanto protocolar.  Meticulosa, inteligente, com ótima dinâmica. Com “protocolar” quero dizer, simplesmente, que, à medida que vá dirigindo os próximos espetáculos, sua estética pessoal irá se revelar cada vez mais. Antevejo, assim, grandes realizações. Há um excelente trabalho com e dos atores nas cenas monologadas e nas “dois a dois”. As cenas coletivas, com muito personagens, carecem ainda de maturação, o que vai acontecer naturalmente. Lembrando que o elenco não reside nas mesmas cidades e, por conta disso, os encontros coletivos ao vivo não tenham sido tantos, durante o processo de construção. Ainda sobre Leandro, não sei se é coisa de ator que passa a dirigir, mas é dada grande liberdade aos atores e aos técnicos para que manifestassem suas propostas estéticas dentro da concepção da direção. Leandro Daniel é um de meus atores preferidos – sempre o cito a alunos. Consegue ser exato, profundo, parecendo ser tudo tão simples, natural e divertido. É um prazer vê-lo em cena.

Simone Spoladore, na personagem central, se destaca pela presença. Presença é aquela capacidade de um intérprete em capturar nossa atenção. Agrega à personagem certa pureza quase infantil e, ao mesmo tempo, uma ironia madura. Características que, associadas às dadas por Botho Strauss, traz a impressão de alguém “tragicamente divertido”. Não comentarei a interpretação dos demais atores, seria uma longa apreciação, com muitos elogios. Friso um detalhe: pelo menos dos que já conheço de longa data, cada um trouxe ao espetáculo e à sua personagem sua marca pessoal, seu jeito pessoal de interpretar. Diferente de espetáculos em que parece que todos “saíram do mesmo filme”. Isso, em meu entender, enriquece o todo. Ainda mais em se tratando das características da obra de Botho Strauss. Com o decorrer das temporadas, é possível e normal que esta “autoria” se amenize em face do conjunto. Estou curioso para ver o espetáculo novamente.   

Por fim, adoraria assistir a uma versão deste O Tempo e a Sala dentro da sala, de forma intimista.   

Vida longa a este projeto!

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