O TEATRO RESPIRA EM HUGO POSSOLO
Ele se define - e se revela - como palhaço, nosso ser de origem. Presença marcante, Hugo Possolo é um homem contaminado pelo teatro. E vice-versa. É olhos nos olhos, é improviso e erros, é intenso. Brilham seus olhos não cansados de quase 60 anos ao dizer da luta da classe artística nestes tempos sombrios e da SP Escola de Teatro – Centro de Formação de Artes do Palco – através da qual surgiram tantos contatos e caminhos de arte como integração e oportunidade de vida, principalmente para a periferia. E faíscam, ao falar de Bolsonaro, suas equipes e apoiadores.
Além de homem
dos palcos artista, Hugo foi diretor do Teatro Municipal de São Paulo, depois
Secretário Municipal de Cultura durante o governo de Bruno Covas. Algumas de
suas muitas lutas.
Sua essência
respira na palhaçaria. E na rua. Na defesa do que chama “teatro sujo”: teatro do
espetáculo vivo, portanto imperfeito e nunca acabado; Negando um teatro simplesmente produto preparado e embalado
para consumo. Na inclusão do espectador no acontecimento cênico.
OS PARLAPATÕES E A PARÓDIA SHAKESPERIANA
Possolo é
cocriador do Parlapatões, Patifes e Paspalhões, surgido em 1991 com suas
pesquisas e experimentos. Tornado famoso
nacionalmente em 1998, com a transposição do nova-iorquino PPP@WllmShkspr.br cuja estreia ocorreu neste Festival de Teatro de Curitiba. Foi proposta do ator e
diretor Emilio Di Biasi, que acreditava ser um desafio e um enriquecimento ao
grupo.
Assisti àquele espetáculo – era realmente
um certo desvio de rota em relação à estética que o grupo desenvolvia. Havia a
necessidade de uma interpretação em parte com bases stanislavskianas, quando os
Parlapatões pulsam a partir da biomecânica de Meyerhold, da construção física
de forças no palco, etc.
Me apaixonei por aqueles Parlapatões. Não
apenas eu, pois a montagem trouxe o Prêmio Apetesp de melhor direção e as
indicações para ator protagonista e espetáculo. Foram dois anos de temporadas e
os principais festivais nacionais.
Sem Di Biasi, falecido há um ano e meio,
será o mesmo espetáculo o que iremos assistir neste festival? Pelas palavras de
Possolo na coletiva - sobre a virtude da tecnologia em permitir ao elenco ensaiar
em frente ao telão e recuperar as memórias da época – será muito fiel. Mas o
grupo amadureceu suas escolhas, o momento é outro, então, portanto, aguardemos
surpresas.
Parlapatões Revistam Angeli
Sim, é revistam, mas também é revisitam.
Aqui, haverá uma banda e também recursos de tecnologia convivendo com os
palhaços. "Há uma certa tensão,
porque a parte tecnológica em princípio não pode falhar. Mas, se falhar,
estaremos lá para ganhar estes erros como presentes”. Sim, o erro é sempre
um presente para o palhaço. A paixão é antiga: o Hugo jovem foi desenhista e
tinha, desde o início, admiração pelo traço tanto de Angeli quanto de Laertes.
Agora, o traço se faz cena.
SOBRE A CRÍTICA
A atividade da crítica, principalmente
após a “explosão das mídias” foi citada por Possolo na coletiva. A crítica já
teve o poder de destruir espetáculos e carreiras. Hoje, por mais especializada
que seja, é reconhecida como um ponto de vista, não “o ponto”. Segundo – e
agora a opinião é minha – o crítico de arte deve se saber integrante do bioma
artístico, portanto tem também a função de enaltecer, valorizar e de convidar o
espectador a conhecer.
PREGO NA TESTA E A DIFICULDADE DE SE EXTRAÍ-LO
"Prego na
Testa" vasculha certo inconsciente coletivo, porão também da alma
brasileira”. (Valmir Santos)
São,basicamente, fragmentos
independentes, adaptados do original de Eric Borgossian por Aimar Labaki (que
também assina a direção).
De início, um áudio em voz
feminina narra um atentado a uma loja, visto do ângulo do terrorista, do outro
lado da rua. A bomba irá explodir em segundos e a voz descreve as pessoas que
entram e saem da loja. Tensão.
Espera-se que a próxima cena
seja continuidade. Mas não. Ou sim. Porque os próximos 8 fragmentos são trechos
de vida de 8 personagens. Recortes, sem começo nem ponto final.
Que linha costura o espetáculo? Penso que seja a que você traçar. Mas vai aqui uma colagem de materiais: “...resume bem o estilo parlapatônico ao expor o ridículo da neurose urbana de forma cômica, reflexiva e angustiante. Personagens extravagantes, cada um carregado de uma neurose e um humor diferentes: o mendigo que se considera dono de um vagão de metrô, o emergente apaixonado pela nova churrasqueira, o fã chato, o macho que participa de um grupo de autoajuda para fazer uma meia culpa por ser viciado em sua própria virilidade, entre outros”. “...o humor nasce de seu próprio desespero; a sensação de impotência dos seres humanos diante da realidade das grandes cidades. E são tantas as vezes que nos sentimos impotentes que parecemos ameaçados por um terrorista imaginário; o espectador oscila entre o medo e dúvida sobre uma vida ameaçada que não é bem a sua, mas que bem poderia ser”. Para Possolo, “estes personagens estão ligados pelas mesmas preocupações e são vítimas de um mesmo descaso, sem ignorar que também são responsáveis pelas situações que enfrentam”. A gente se identifica. Fala de nossas pequenezas. “...texto sem piedade ou compaixão, com um humor nervoso, sobre a incapacidade humana de superar seus conflitos mais banais”; "Ele não só encontra ressonâncias na atual situação política que vivemos, mas é toda uma crítica da classe média", diz Possolo. "Que rumos nós queremos tomar?"
Há o paranoico com relação à violência; há o que se orgulha de suas filantropias; há o artista (o “chato” citado anteriormente) que procura - e exige - o apoio de um famoso para ser alçado ao lugar de fama que acha merecer. E também, em certo momento, há o próprio Hugo Possolo, que emerge do personagem para conversar com a plateia, brincando com o fato deste espetáculo ser daqueles ultrapassados, de texto, ator e algumas peças de cenário... Cadê o espetáculo contemporâneo pós pandemia, de efeitos modernos e híbrido de presencial e virtual? – brinca. Seguido, revela sua emoção em estar de volta aos palcos, após três anos, e de como isso é importante demais, essa volta dos palcos às pessoas. Emocionante. Chega a chorar. Esta prosa muda o rumo do espetáculo: se os personagens já conversavam com a plateia, direta ou indiretamente, agora é o ator, a pessoa, abrindo uma relação de intimidade. E não é justo por esta intimidade, por esta presença, que ansiamos novamente?
O VELHO CAMINHANTE FAZ SEU CAMINHO
Possolo tem muita estrada, sempre se aprende com
alguém assim. Se, de início, anda muito pelo palco, tomando os espaços numa
certa agitação, nos últimos personagens já se posta mais parado, destaca certos
gestos e gestus (sociais) das personagens; as palavras e as emoções ganham
destaque, numa comunicação cênica que considero mais limpa. Esta sequência,
provavelmente, é da dinâmica da construção: uma espécie de redemoinho que vai nos
afunilando.
Não acompanho sua carreira. Mas, ao menos nesta montagem, não prioriza
a construção física detalhada das personagens, nem mesmo a caricatura exata que
diferencie um do outro. Neste
“teatro sujo”, quer dar apenas algumas pistas de
sotaques, de dinâmicas e
corporalidades... e é o que
basta.
A voz é Hugo Possolo. Também o
é o estilo de comédia, com o explodir em
palavras altas, com a voz de repente se agudar ou, ao
contrário, entrar num drive
roqueiro. É o
palhaço, anunciando sua presença nos personagens.
Em termos de direção, Prego na Testa me pareceu espetáculo que não se interessou pela concepção plástica da cena: figurinos e elementos de cenário parecem impensados, como se de pouca importância em relação a texto, ator e sua relação com a plateia. A sonoplastia segue a mesma linha; a iluminação geralmente em plano geral.
Penso que poderia ganhar muito se os elementos pudessem enriquecer, agregar significados e sensações, ou simplesmente ajudar no clima, na magia...
Ou, talvez, seja mesmo
parte dessa concepção “suja”.
No último quadro, representando um palhaço, o artista, o brasileiro, Possolo vibra o verbo num manifesto direto contra o atual governo e seus asseclas. Neste momento a
maioria da
plateia da cidade sorriso preferiu ficar calada. Outros, aplaudiram.
O público em geral – que
não é da classe artística – desconhece, por exemplo, a realidade do que disse o
artista na entrevista de ontem: “eles (o
governo) fizeram e fazem tudo para evitar que as verbas dos editais cheguem aos
artistas; fizeram de tudo para evitar a aprovação da Lei Aldir Blanc, por
exemplo. E para dificultar o acesso a editais e a participação –
principalmente a artistas de periferia ou mais velhos; Mas, para a mídia, desfilam seus discursos de um governo que apoia a
cultura. Assim acontece., também, no Paraná.
Então o discurso faz uma curva e termina de novo em emoção.
E o público
levanta! E aplaude de pé o que sentiu, por quase um minuto.
Muito bonito começar o Festival por um espetáculo assim! Vivas!
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