"CONSELHO DE CLASSE" - A SIMPLES E TRISTE REALIDADE

Sou fã da Cia dos Atores. E nunca esquecerei do fantástico Melodrama, uma intensa pesquisa crítica formal daquele estilo, resultando em espetáculo requintado, perfeito. Nem,  tampouco de " A Gaivota", que assisti no Teatro da Caixa. Esta companhia representa, para mim, a pesquisa, o compromisso estético e social e, principalmente, a metamorfose: passeia por diferentes estilos e temas, brinca com a arte. 


Em “Conselho de Classe”, concebida em 2013 e  premiada em 2014 com o Shell de cenário, o Cesgranrio de espetáculo, texto, direção e cenário) e o APTR  para texto, direção e ator, temos um espetáculo que, se pensarmos na potência criativa e artística do grupo, é algo aquém do que já foi. Praticamente, mostra um recorte da realidade. Prefiro entender, no entanto, como um ato de humildade, de simplicidade.




Do release do espetáculo:


A história ocorre em uma escola pública do centro carioca, problematizando questões macro e micropolíticas da educação. No texto, há a abordagem realista do ambiente escolar, a fim de gerar um diálogo a respeito da educação no Brasil e da sua atual situação no mundo.

Em cena, uma reunião de professores - realizada na quadra de esportes, porque o ventilador da sala de reuniões está quebrado - é desestabilizada pela chegada de um novo diretor. Esse encontro faz eclodir dilemas éticos e pessoais em meio a decisões que se confundem nas relações de poder da instituição escolar. É o ambiente escolar fervilhando. Problemas no processo ensino-aprendizagem, no processo avaliativo das instituições escolares, na avaliação do rendimento do aluno, nos conteúdos, na metodologia de ensino e na filosofia de educação, fundem-se com as dificuldades políticas existentes entre grupos “rivais” liderados pelas pessoas que almejam os cargos mais altos da escola.

É da premissa "envolvimento da comunidade" que surge o nome da peça. Conselho de Classe é um colegiado que deveria abranger professores, funcionários, pais e até representante dos alunos – embora essa formatação nem sempre se apresente. “Esse é o verdadeiro conselho e é isso é o que deveria acontecer, uma vez que abrange todos os lados e pontos de vista sobre esse espaço de conhecimento”.


Sou também da área de educação e convivo com muitos professores da rede pública. E o que se vê em cena é, simplesmente, um trecho do real. E a potência do texto de Jo Bilac está, em parte, em como chegou a esta simplicidade. Acompanhada de trechos brilhantes, como a fala  da velha professora (perdoem-me se não é exata): "Gosto de ir ao teatro porque lá, pessoas de mentira falam muitas verdades e aqui, pessoas de verdade falam muitas mentiras". 


Jo consegue mostrar uma paisagem. Imagine um quadro à sua frente, repleto de figuras que fazem relação entre si. Você não sabe por onde começar a olhar, onde está o começo, nem sabe exatamente o sentido que deve tomar, apenas sofre o impacto da obra. E fica um bom tempo olhando para as relações particulares entre as  figuras. 


É assim que vejo essas figuras contraditórias em seus discursos e práticas: os governos, com lindos discursos e falta de água e falta de respeito e sua política de aprovar todos os alunos durante os conselhos de classe para "melhorar os números da Educação"; as secretarias de Educação e seus representantes - que elaboram belas cartilhas, realmente, junto a exageradas burocracias, frutos de muito estudo teórico e muitas vezes com pouco conhecimento da vida prática, do dia a dia das escolas; os professores, seres tão parecidos mas também tão diferentes em suas visões de mundo - nem sempre amparadas pelas ideias deste ou daquele teórico da Educação. Muitos que, julgando-se na defesa de sua sanidade e de seu bolso, usam de estratagemas como vender produtos, como pedir atestados de saúde, ausentar-se de reuniões que pensam não levarem a nada, etc etc e etecétera. E os alunos. E esse microcosmo político humano, da fraqueza humana, da mesquinhez humana a que estamos todos sujeitos. Mais que isso, talvez, o texto faz aparecer a coragem, a determinação... mesmo que tenha existido e, agora, talvez não mais esteja presente.




É preciso pontuar que os poucos professores presentes dizem ter procuração para representar um tanto de outros. O que, no Brasil, está em tudo, desde reuniões de condomínio. Aqui, o tanto de professores que preferem não participar das discussões e se decisões políticas, tanto por acharem chatas, por não verem sua importância, como por não suportarem os pequenos grupos de poder que as dominam. Valeria citar o texto "o analfabeto político", de Brecht

 

Muito interessante, em certo momento, a colocação sobre a tão declamada educação no Japão, de que o professor é o único profissional que o Imperador reverencia. E, de quebra, sobre  o acesso às redes sociais ( e sua confiabilidade). Uma das professoras reflete: "Não é bem assim. Os professores lá não ganham tanto, e também têm seus problemas com alunos..." E a outra - "Você já esteve no Japão?". "Não - diz a primeira - "eu pesquisei na Internet". 

 

No texto, os poucos professores expõem sobre acontecimentos passados. Não os mostra, deixando ao espectador imaginar o tanto de verdade e o tanto de ficção ali contido. Há, sobretudo, a discussão aberta, democrática, e a acompanhamos tanto quanto o novo diretor adjunto ali presente (propositadamente, um jovem). Sim, há os relatórios e as fichas, que deveriam comprovar isto ou aquilo. No entanto, se vê que mesmo os dados, na escola, nem sempre correspondem à verdade. Exemplo é a pergunta dele à professora de Educação Física, que acabara de reclamar muito de alunos como Maicon Douglas, acusando-os de, além de não virem às aulas e terem péssimo aproveitamento, serem baderneiros. "Mas aqui nas suas fichas as notas mostram que são ótimos alunos" - diz o diretor. E a professora responde que deu essas notas para livrar-se deles (do incômodo que causam, do perigo físico que representam, sabe-se lá). 


Em outro momento, falando-se do problema que levou a uma revolta geral dos alunos - que na opinião da professora de Educação Física foi incentivada  pela professora de artes (e esta não o nega), neste momento cita-se que um grupo de alunos, em forma de protesto contra discriminação, encenou um trecho de O Pagador de Promessas Obra de Dias Gomes (que é aliás o nome da escola). O diretor quer saber, então a professora de Literatura resume com uma frase mais ou menos assim: "É a história de um rapaz que queria enterrar o burro, mas não deixaram. Aí teve um quebra-quebra". é a menção ao despreparo de certos professores. Após, a professora de arte explica melhor ao diretor e ele, possivelmente, compreende.


Este despreparo - esta irresponsabilidade - acontece, por muitos motivos, que vem tanto de professores como das instituições. Lembro de ter passado em um concurso do tipo PSS, há alguns anos. Fui chamado por um colégio conhecido para ministrar aulas de Linguagem Cinematográfica. Recusei, perguntando se não havia, entre os selecionados, alguém da área de Cinema. A funcionária piscou para mim, quis me ajudar: "o professor lê alguns livros e já aprende. É para alunos que não sabem nada, mesmo".   


Poderia ficar horas discorrendo sobre a Educação e sobre trechos do espetáculo. Para ver como o trabalho da autora - de confeccionar uma obra enxuta e funcional cenicamente, é admirável. Destaco, por fim, o cuidado tomado para que o sistema, e não a figura do professor, se tornasse algo tragicômico. 


Me perguntei o porquê de serem todas professoras e do diretor enviado pela secretaria de Educação ser um homem. 

 

Senti falta da figura da pedagoga (coloco no feminino porque geralmente, nas escolas, é mulher). Também de algum elemento da comunidade. Mas seria pedir muito, pois ocasionaria mais um belo tanto de conflitos. 


"Conselho de Classe" é espetáculo que poderia se tornar cansativo. afinal, é fala,fala, fala...

a realidade do fato é essa. Fora um problema de microfones que por vezes tornava um esforço ouvir bem, não foi. A construção como "um recorte da realidade" também dificulta. Neste ponto, achei interessante a opção de se ter uma das personagens com andamento diferente dos demais, mais lento, mais caricato, mais pontuado. Também gosto da construção das personagens, interpretadas por homens. Além de causar distanciamento, lembra que há professores de quaisquer sexos. Realmente, não é necessário se tentar caracterizar por figurinos ou por trejeitos. 


Ao cenário, não faltam elementos, está tudo ali, o retrato do ambiente. Senti um pouco a falta de uma iluminação mais presente, a valorizar certos momentos. principalmente nos primeiros 30 minutos do espetáculo; e mais setorizada, visto que o cenário contém muitos elementos e os figurinos são, como ele, coloridos. No entanto, a ideia de "bagunça" e de "confusão" combina com o que vi. 


Não faltou a menção ao grande Paulo Freire - cuja afirmação foi aplaudida pela plateia em cena aberta. Não sei se, ali, se tratava de uma "pegadinha", uma vez que a afirmação sobre a Educação é dita por uma daquelas professoras, e não por uma voz em off ou outro elemento distanciante.


E não faltou o "fora Bolsonaro", também aplaudido. 


Algumas reflexões da diretora Suzana Ribeiro:


Segundo a diretor Suzana Ribeiro, "a importância da peça é continuar discutindo o assunto do ponto de vista de quem faz a educação. (...) O maior elogio que recebemos é quando os professores dizem que se sentem representados em cena. (...) O corpo docente está adoecido por conta das condições precárias de trabalho. É um tema duro, difícil de contar”.


Ainda que a peça denuncie o abandono político da educação, também levanta pontos sobre o que pode ser feito por quem faz parte do sistema educacional. “A escola não está bem há muito tempo, por isso precisa olhar para ela mesma, se revisar, discutir e ter lugar para isso ser feito de forma inteligente e comprometida”. E o despertar das reflexões durante o espetáculo acontece, de acordo com a diretora, sem defender lados. “Tentamos distribuir as razões e entender que um professor de Educação Física pode ter um ponto de vista diferente de um professor de Artes ou Biologia. Isso é rico e cria dinâmica forte. Acaba, muitas vezes, que a plateia concorda com todos, mesmo que os personagens discordem entre si”.

 


 



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