A QUEM NÃO FOI À PALESTRA/WORKSHOP "SER ATOR", PALAVRAS SOBRE O QUE PENSO

O curso como um todo destina-se à formação do ator. No entanto, o primeiro módulo é aberto a qualquer pessoa que deseje usar dos benefícios do teatro para seu conhecimento pessoal. A partir do segundo módulo, decidirá se quer seguir. 

Entendo um percurso como uma parceria de construção de conhecimento. Concordo com o velho Sócrates: só passamos a deter um conhecimento quando o construímos. Assim, repetir o que foi aprendido no livrinho ou ter ouvido do professor não é o saber. O saber só começa quando você questiona, quando você tenta chegar às conclusões do livrinho através de sua experiência. Quando você experimenta na prática e pensa: “agora começo a entender”. É desta forma que alunos que se formam, por exemplo, em uma faculdade, ao iniciarem a carreira verão que pouco sabem. Saberão com o correr da prática cotidiana. Por isso, quando dou aula, espero que meus alunos sejam parceiros e construam comigo o conhecimento.

O curso se ampara em 3 pilares: teoria, prática e atividades externas (assistir teatro/filmes/vídeos e grupos de discussão). Pouco adianta fazer sem pensar, pensar sem fazer, não adianta pensar e fazer sem analisar o que outros fazem.


SOBRE O NATURALISMO

Muita gente pensa que Naturalismo (ou, segundo JJ Roubine, “ao natural”), significa ser você mesmo no palco ou na tela. A interpretação televisiva em novelas ajudou a divulgar esta distorção.  Toda interpretação é uma edição da realidade, não é a realidade. Exige, portanto, técnica e posicionamento. Todo a composição do personagem e todo gesto vocal e corporal é – consciente ou inconscientemente – escolhido. No primeiro módulo falaremos bastante disso. Também falaremos e praticaremos o “estar em situação”(fé cênica, no dizer de Stanislavski) que se baseia em aceitar as “circunstâncias propostas”. Falaremos e praticaremos a construção de personagem. Mas a personagem física (aquela que é diferente de mim), esta será objeto do segundo módulo.

O Naturalismo como conceito estético entre os séculos 19 e 20, era o de colocar no teatro “a realidade”. A grosso modo, como fosse hoje em dia se colocar uma peça cujo cenário é um banheiro, num banheiro real. Este Naturalismo vamos discutir durante o curso, faremos também interferências em ambientes reais. É o caso do exercício público que realizaremos ao final do segundo mês (não se assustem os iniciantes, será algo simples e divertido). Mas, em paralelo, vamos experimentar a essência do teatro (a magia de ver o que não está ali e a colocação do ambiente de ficção no ambiente real). O espectador vai ao teatro disposto a ser absorvido pela magia: sabe que está em um local real – o teatro, mas finge conosco que está no ambiente da ficção. Este encontro entre o real o a ficção dá margem a muitas brincadeiras cênicas. Se um ator pega uma caixa de charutos e tira dela um, isso é real. Se a caixa de charutos não está ali, mas ele e público acreditam que está, isso é real, também. É essa magia que o teatro tem, e é de onde parto. O cinema mostra o real, embora mostre ângulos e formas de se o vermos. A pessoa que vai ao teatro vai gostar quando vive esta magia.

Também o naturalismo na interpretação obriga o ator a ter “verdade”. É comum ao ator, hoje em dia, em meio a tantas atividades performáticas nas quais a forma impera, independente da essência, simplesmente “declamar um texto”. È muito comum, por exemplo, ao se propor um improviso, que os atores não se concentrem “na situação” para a ela reagirem. Ao invés disso, pensam em “como” vão fazer. Ora, o “como” é resultante da situação. Após isso, aí sim, pensa-se na melhor forma estética. O pior é quando fazem isso com cenas de espetáculos. Pula-se a essência para ir direto à forma. Perde-se a verdade e a vida, porque a vida não é assim. Para se ter essência, é preciso investigar a realidade de um texto e de um personagem. Investigar é até fácil. O problema surge quando se trata de encarnar (tornar em carne). E não se pode fazer isso se não se investiga e se experimenta a si mesmo.



Alguns alunos me perguntam por que Stanislavski, na parte final de sua vida artística, criou o tal “método das ações físicas”, contrariando, aparentemente, o que havia dito em suas primeiras obras.  Respondo que, nelas, ele partia do interior para o exterior, ou seja, a forma como resultante das atividades psicológicas e das condições físicas (estar cansado, ter um problema na perna, etc). Com o “método das ações físicas, ele afirma algo (a groso modo) como: “se o ator realizar os movimentos de seu personagem lentamente em certa cena, este personagem se tornará calmo, objetivo ou coisa assim, na mesma cena. Em outras palavras, a forma física atrairá a forma psicológica. E isso não é contradição alguma, como os estudos da psicologia corporal demonstram: corpo e mente são uma coisa só. Stanislavski apontou 2 caminhos para se chegar a uma mesma essência. E o “método das ações físicas” veio a solucionar um problema: como manter, dia a dia nas apresentações, a mesma força viva na interpretação? Visto que o ator, ensaiando sempre a mesma cena, tende a “cristalizar”, a repetir por repetir. Principalmente após ter chegado “à forma correta para tal cena”. Aliás, na interpretação teatral, especificamente, cristalizar é a morte. Devemos deixar sempre as portas abertas ao novo, ao aqui/agora.

Vale um comentário: no Naturalismo (nascido ao mesmo tempo em que a Psicologia), o propósito é mostrar o ser humano psicológico, suas particularidades e contradições. As formas Simbolistas que abordaremos nas demais fases do curso nem sempre tem este propósito.

Investigar a si mesmo é condição fundamental a um ator ou a uma atriz. Afinal, é a única arte em que o instrumento somos nós. Um pintor tem a tela e as tintas, um músico tem seu instrumento, até um bailarino tem seu corpo como instrumento estético. No caso do ator, ele é integralmente (voz, corpo, emoção, pensamento) seu instrumento. Nesta viagem, o ator deve investigar  o outro. O ator (mais ainda o naturalista) interessa-se pelo outro como um psicólogo. A diferença é que o psicólogo se propõe a aliviar a angústia, o ator a interpretar.     

Voltando à “verdade”. O conceito é amplo, porque existe a realidade/verdade do pensamento e do sentimento em vigília e existe a realidade/verdade do sonho e dos atos dos quais não temos consciência. Assim – veremos em módulos seguintes, estéticas como o Expressionismo e o Surrealismo são complementares ao Naturalismo, por serem distorções da realidade objetiva para a “realidade” da emoção e do sonho. O Naturalismo tem como alvo principal o ser humano, “o espírito humano” – como disse Stanislavski.

Nosso percurso pretende, também, resolver um impasse: como poso ser natural, espontâneo, não sendo eu? Como posso criar um corpo e uma vez estéticos (ou seja, causando maior impacto na sensação e na emoção do espectador), sendo eu e sendo o personagem natural? Por isso, adianto: não é natural: parece natural.

A interpretação naturalista é a principal exigida dos atores para Cinema e Televisão. 


Nos ensaios para a construção do espetáculo, há tempos atrás (notadamente em espetáculos com personagens-máscara – segundo Matheo Bonfitto – aqueles psicológicos ou sociais), havia um extenso período da chamada “leitura de mesa”. Eram leituras, mesmo, os atores e os criadores técnicos sentados à volta de uma grande mesa. Neste processo, discutiam o autor, compreendiam os personagens, suas intenções, seus conflitos, ou seja era todo um tempo de compreensão e de maturação, sem no entanto cristalizar a interpretação. Só após isso iam construir as cenas fisicamente.

Poderia falar muitas outras coisas. Vou apenas, pontuar algumas:


“ALGUMAS PALHINHAS“

O desafio do ator, ao interpretar um personagem de época, é o de ser tão natural quanto ele, mas no contexto dele e no contexto estético da obra. Também é o desafio do diretor. Ele se pergunta, por exemplo, ao realizar uma obra de Shakespeare ou de Molière: como tornar o texto da época, falado daquela forma estranha ao público de hoje, gostoso de se ouvir? Já vi montagens em que os atores falam o texto rapidamente, como falamos em nosso cotidiano. Resultado: o público não entende, tantas palavras diferentes existem ali. Além disso, corre-se o risco de perder-se a poesia contida nas imagens das palavras.

Um ator interpretou o personagem Othelo, de Shakespeare. Fez uma voz mais grave, para parecer mais velho. Tornou seus gestos mais rijos, para parecer um guerreiro. Perguntei, então: “o que é isso? Eu estou vendo um garoto tentando parecer que é outra coisa, apenas. E isso me impede de ver Othelo”. Ser um personagem não é ser você mesmo. Como fazer para ser esse Othelo, um militar mouro de séculos atrás? No mínimo, pesquisar e pensar. E que Othelos posso ver na rua hoje (já que Teatro é e sempre hoje?) Mas tem muito mais coisas aí. Não falo que é fácil, pode não ser. E é tão difícil quanto desafiador. E pode surpreender pela simplicidade.   

Todo ser humano tem suas lógicas, fruto de seu olhar, de sua experiência, de seus mecanismos estruturais. Ao interpretar um outro, o ator deve buscar suas lógicas, seu olhar. Gosto de citar o exemplo do louco: “o louco funciona com uma lógica, não é “qualquer coisa”.  Ao penetrar na lógica do personagem, o ator o desvenda e o pode representar com facilidade maior do que pensava. Um exercício: conversar com alguém que tem opiniões e sensações bem diferentes das suas. Ao invés de se contrapor à pessoa, procure concordar com ela, dar corda, para entender e se colocar com ela.

Atores não funcionam por coisas vagas, por coisas “mais ou menos”. Quando pergunto a um ator que imagem ele tem do lugar em que seu personagem está em certa cena, muitas vezes ele não sabe dizer, nunca procurou enxergar. Ora, se ele não sabe em que lugar está, então não está.

Numa cena em que o ator contracena com um personagem que o público não vê, pergunto quem é esse personagem e como ele está reagindo. Muitos atores nem enxergam esse outro. Ora, se eles não enxergam, com quem estão falando? E por que estão falando, afinal?

Desde que nascemos somos seres reagentes: reagimos. Uma ação é uma reação. Uma reação a que? A quem?

A emoção: emoções são sempre fruto de histórias (dizia Celso Nunes); não existem emoções puras, elas são misturas de sensações. Dizer que seu personagem está triste é muito vago. Que espécie de tristeza? A saudade, por exemplo, é fruto da alegria e da ausência do objeto que trazia a alegria. Traz, portanto, certa tristeza. Pergunto a alguns alunos o que seu personagem sente: “ah, mais ou menos saudade”. Tudo bem, nem sempre conseguimos dizer em palavras, mas não investigar esta saudade é empobrecer a si e à arte.

A voz. A voz é nosso corpo sonoro. Somos nós. Para a Psicanálise, por exemplo, tanto o discurso como o tom da voz são os objetos principais da percepção do paciente. Uma pessoa ou um ator com voz impactante fazem toda a diferença. Faremos exercícios isolando a voz. 

Como ter corpo e não ter voz, se é a mesma personagem? Mesmo assim, a média dos atores e atrizes brasileiros a trata com certo desleixo.



Parto da vida. Falei a um aluno que, quando imitamos, parece que “somos” aquela pessoa imitada. Fazemos imitações várias vezes ao dia, quando incluímos alguém em uma fofoca, em uma reclamação ou em uma admiração. Que exercício podemos tirar daí? Minha ideia é partir da vida, da interpretação que já fazemos na vida desde pequenos, para a atuação. Sempre partindo da vida e a ela retornando: arte.

A arte aponta para a vida. O espectador sai satisfeito (e voltará)  quando foi provocado em suas ideias e emoções, quando presenciou algo belo (tocante), quando participou de uma aventura. Quando sai dali pensando em sua vida e na vida humana, social, do mundo... Os artistas são barqueiros que levam os outros para uma viagem aos rios da vida.

Representamos desde muito pequenos e não percebemos. Cada um desenvolveu suas máscaras, cada um desenvolveu seus talentos para conseguir o que queria ou escapar do que não queria; desenvolveu-se em alguns papeis sociais, em outros não. A descoberta desses mecanismos, dessas máscaras, deveria ser o ponto de partida para se (re)aprender a interpretar.

O que é nossa riqueza é, também, nossa pobreza. Quem é lento e anda lentamente, como um ancião, vê muito mais detalhes. No entanto, não pode experimentar visões de velocidade. Um cego ouve e toca muito mais que os outros. E não enxerga este mundo vasto e brilhante. Cada um de nós olha através dos óculos que tem. E não conseguir ver por outros muitos óculos possíveis. Por isso, precisamos dos outros. Precisamos da experiência dos outros.

Quando um figurinista exercita por 1 hora seu olhar sobre as roupas as pessoas usam em certo local social, estará perdendo tantos outros detalhes das pessoas e dos locais: o cenário em que elas se encontram, suas relações...  Estes dias um aluno me enviou um vídeo com sua interpretação. Assisti e tal, com uma amiga que não é da área. Ela viu o vídeo e falou do cenário de fundo, como era interessante. Eu, nem havia reparado. E não é que meu aluno havia planejado aquele fundo, uma porta aberta, etc, para dar efeito à cena?. O que nos faz ver bem também nos faz ver mal. Precisamos dos outros: teatro é sempre coletivo.

Se o ator deseja desenvolver suas experiências, deve olhar para as pessoas, prestar muita atenção nelas: procurar vê-las, no possível, como elas são, sem conceituar. Ver o outro e a si mesmo como se é. Porque o que somos está aí, no jeito de agir, no jeito de falar. Impossível negar fatos. E reações nossas que se repetem no dia a dia, mais ainda. Elas dizem quem somos, não quem pensamos ser nem quem queremos ser. Ao estudar pessoas, um ator está se construindo personagens. Mesmo que não os reproduza em seu corpo. Estudar pessoas é ter mais personagens em seu currículo.

O ator aproveita a rua para ora andar mais rápido, ora andar mais devagar, mudar, enfim. Mudar seu impulso corporal quando anda, quando senta e levanta, tudo isso são exercícios de reconhecimento de si e de apropriação de “outros” possíveis. Já repararam que geralmente cumprimentamos com a mesma mão? E que, quando nos chamam, às costas, viramos geralmente sempre pelo mesmo lado? E quando em pé, nos apoiamos sobre a mesma perna?

O ator aproveita para “se colocar em situação” na vida. Conta uma mentirinha aqui, outra ali. Pergunta a alguém onde fica uma rua que não existe. Sente uma dor que não existe...

O ator assiste a uma cena olhando apenas para o jeito de falar dos personagens. Assiste de novo, tirando o som e atento aos movimentos corporais, portanto.

São aventuras de ver a vida. Em nosso percurso, faremos isso.
Faremos, também, o mesmo espetáculo em locais diferentes, para públicos diferentes. É nessa aventura que o ator aprende muito.

Se você leu até aqui é porque deve ter gostado. Talvez se assuste e pense: “eu só queria fazer teatro para melhorar a minha vida, minha comunicação pessoal. Não é para mim”. Pode ter certeza que é para você. Porque se trata de um percurso divertido. E tudo o que falei acima será em forma de iniciação, não coisa pra vida inteira. E, como em todo percurso, “o caminho faz os caminhantes, mas os caminhantes alteram o caminho”

Em nosso curso, tivemos sorte: a primeira peça que vamos assistir será Tchekhov. Que, por coincidência, fala do tempo de Stanislavski e do teatro naturalista.


Espero ter esclarecido você!
Fernando Klug

PALAVRAS DO GRANDE ATOR E DIRETOR SÉRGIO BRITTO:






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